domingo, 18 de novembro de 2012

Intérprete





No ver ouvir, entender
era uma massa que se poderia cortar
em duas fatias:

não conhecer seus símbolos ou
me perder nesse narrar confuso
que são os descaminhos e rumos das palavras.
Um fluxo de leite.

Não me dou a guardar e repisar poemas
em gavetas com maracujás e grilos. Eu deixo
a mastigação repetitiva para as vacas.

Se o compositor cria uma canção
há essa hora em que a cantora a escolhe
(ou é a música quem pega a intérprete, num vício? Num encanto?)
para que nunca mais se faça ouvir os mesmos sons. São os anéis e os dedos.

Ela cantava e imprimiu sua marca nas notas para sempre. Não haverá como repeti-la.
Esse que é o modo das canções também é um estilo torto de amar.


[Ilustração: Noite, Michael Ornstein. Disponível em <http://michaelornstein.com/night> Acesso: 20/11/2012]

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A idade de amar

Para Sabrina Mostafe






Sabrina, nós somos
mendigos.

Na linha do horizonte,
as portas
daquele filme antigo
invertidas deitadas abertas
fecho-as para te dizer
que os passistas e as
vedetes

vão deixando beijos pequenos
em nossos chapéus.

Mas, amiga,
como as fechamos?
Ou foi o vento?
Algum evento amoroso
de carne, mal-sucedido.

Saio pedindo
por aí
enquanto ficas intacta.
Nas sombras, os dois.

É que eu acho
e acredito nesse
meio tempo arvoredo
entre o carro que passa
e a pedra que fica.

Vários planetas
altos astros
sobre esse ato singular
derramam-se sobre
os nossos ombros cansados.

Apesar do que nos amarga ao passado,
é chegada, irmã,
a idade de amar.

Foto: Dia 949, por amy hildebrand, do blog da autora: <http://withlittlesound.blogspot.co.uk/2012/04/day-949.htm> Acessado em 11 de maio de 2011.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

O trem das cerejas




O trem das cerejas
é um estado imaginário
e permanente.

Sem que se espere,
em meio a devaneios de afeto
eis que surge esse móvel

feito de vermelho
ameixas romãs morangos.

Uma pessoa delicada
se acaso tivesse os pulsos feridos
ou sofresse os infortúnios
do entregar-se nele
deixaria, certamente, jorrar não sangue
mas o sumo vermelho das frutas.

E é com esse suco
doce cítrico em fascículos amargos
que me embebedo e desloco pelas ruas.

Cada rua esconde
em seu recheio
uma camada de sangue

porque a metrópole
e sua superfície
é a pele viva
de um grande gigante.

Anda-se e o Deus
tem cócegas
nos encontros improváveis
que não deveriam acontecer
(mas seguem sua natureza de rio
e fluem).

Só pode dizer-se humano
quem sobreviver
a essa pequena morte.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Notas sobre uma solitude



Namorar-se
na guerra (terra, tiros)
em meio a idiotas
luto
e o brilho fútil de tudo.

Um namoro de si
verdadeiro e obtuso
contra usos alheios
ilusões, ou devaneios.

Namorar-se
entre palmeiras
e praias as paisagens
imaginadas
o sonho espesso
da lágrima.

Esse cortejo
vai e vem
de gente móvel
que a nada se fixa

a não ser às
pequenas placas
de concreto
uma a uma

fazendo um mundo seguro
de invenção
e plástico.

Namorar-se
como um bebê
descobrindo
com a boca
os próprios pés.

O pai
e a mãe indo embora,
distanciando, proponho:

essa nossa gente namorar-se
por apenas ser só
entre uma cadeira e outra
cadeia ou gaiola cardumes
deitados sobre asas enormes
na multidão. No estuque.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Anéis, colares



Ouço o cheiro apimentado da chuva.
Sobre o dorso, um colar de fracassos.

Dentes penas pele escamas
de um passado gravado
e atravessado por um cordão
no pescoço.

A tal ponto e calamidade chegou
esse nosso distanciamento,
meu e da lince.

Mas outro dia
deitei-me

conchas e caramujos
me cobriram a nuca

para amiúde
se irem trocando
alguns restos animais

por pérola e pétala
branca.

Esses anéis que eu
para sempre uso nos dedos
pro modo de lembrar
essa libertina aliança

com a natureza
e sua sombra.

Com a tristeza
e sua luz.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012




Poder da flauta
trasversal
para atravessar
avessa devassa
a escuridão.

Se der, ser
um pouco
misto
de bicho
mato pedra
e luz.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Oração para a menina das pedrinhas


Aquela que dei não era uma
e
pergunto-me, oro:

- Onde tem andado, rondaria
minha menina das pedras, pedrinhas?



Se aparecesse
poderia saudá-la: suspiros,
sua vinda constelando. Sons.

Contaríamos nas trocas todas
estórias, rodas – andor, linhas – estrangeiras
mas...
não podendo haver

ela tão linda, alta, trimtrila-me
estrelas num céu profundo. Sims.



Junto
senta-se desenhando
            rabo de cavalo
cascalhos, jóia e joio
dados.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Canção do fogo



Companheiros meus, é noite,
aquecemo-nos.

Na fria hora
dos cães carcomerem carne,
juntos, na óssea flama,
nos venhamos esquentar.

Por entre câmaras,
ausentes  os finos fios de cabelo
que o chapéu tenta dar proteção
cubramos esqueléticos caninos na chama, companheiros.

É na faísca
que distantes legiões
conosco vem comungar,

portanto
em nossa alucinação faminta
         estendemo-nos, irmãos,
no fulgúreo tutano deste ir-se.

Ilustração gentilmente cedida por Mari Calil.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Cuidados



Levar as canções que ouves
como conselho
pode perdir-te
uma certa perigosa liberdade

com a qual nada no mundo se acostuma.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Autorretrato

Eu sou
um cinegrafista amador

que escreve
os movimentos da imagem
                       amando-as
e, no elevador,
nada produz
mas
na roça, dança.

E as minhas palavras
retratam
as maravilhas imperceptíveis
e os enormes desastres
do humano
com caixas pequenas
(é assim que as quero, poemas).

Nas mãos
levo uma semente
de liberdade

e, por ela,
me exilam
envenenam
ou tentam os caminhos
fecharem.

Acontece que
o amor não é controle
(isso aprendi)


e não sou
quem manda
nos movimentos justos
                     do vento.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Esquerdo






Meu lado esquerdo
é o avesso
e são as vezes
em que falei contigo
mas não houve resposta.

Ele
é das vozes
que desenham rostos
nas manchas da parede
e dos outros também,
mas meu, por carinho.

A pulsão e pulsação
subterrânea e clara
dos meus movimentos quando
deitado no chão.

E as imagens
a me aparecerem
na antessala do sono.

Mas não posso
chamar de sombra
o que na luz se desenha.

A virada da montanha
é o que se lia
nas mãos.

Essa é minha onda negra
a tácita feiúra
e os cascos de um animal

mas levados
como órgão vital
ou a marca lavra da palavra.