quarta-feira, 26 de outubro de 2016

QUESTIONÁRIO



1-Na cidade que você habita, as ruas cheiram fezes, sangue e carne estragada?

2- Ela tem espaço para as crianças e os idosos?

3- É possível amar, ou essa é prática somente permitida, proibida ou sonegada?

4- No lugar que você mora, há espaço para ser, sem distinção? Ou as pessoas com deficiência lidam com mais do que a perda de um membro ou sentido?

5- Sua cidade tem nome de santo católico, ou recebe para nomeá-la uma divindade de outra tradição, ou substantivo comum, como a lembrança de um pássaro, uma porta estreita, ou de uma senhora que da janela contava suas histórias?

6- Quem ocupa e dá nomes ao meio urbano em que você vive? Generais ou poetas?

7- É possível viver o corpo onde você mora, ou as mulheres grávidas, mães, lésbicas, loucas, barbadas ou de pênis não possuem lugar algum?

8- As ruas que residem abaixo dos edifícios em que você está maternalmente alimenta seus filhos, ou todas as noites, no mesmo horário, é preciso vistoriar o lixo em busca de resto que se possa comer?

9- Na sua casa, a História é lei e policia, ou pode ser vista como um poema para refletir?

10- Entre um automóvel e outro em que sua família construiu uma laje ou sobrado, pode-se ver o céu, os rios e o mar, ou lhes é dado enxergar oceanos de concreto e lama apenas? Você continuou ou cortou este cordão?

11- Como suas escolhas políticas (para além e aquém do voto nas últimas eleições) afetaram estas últimas características todas desse local em que se deu nascimento, esse labirinto em que se amaram seus ancestrais e com o qual todos os dias seus pés marcam o tempo?

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Lírica

é perigoso enxergar

quando alguém
nos soterra em um aquário
e a alegria possível
é passear com peixes mortos

ou você é um homem de três tetas,
um balão no meio da cidade

"os olhos queimam", meninos
cuidado

para ver, precisei abrir os braços
e essa brasa invisível
é dado para o tato, não para os olhos

então, eu quero o lirismo
das putas
das travestis
merda de bicho ou de gente
essa mancha esse cheiro os ruídos?

também preciso do encontro

sábado, 20 de junho de 2015

Fios



No dia em que vi o cão derrubar seu dono para lutar com outro,
foi quando escrevi essa história para ela.

A tarde era rosa e eu descrevia a paisagens
e os tempos para contornar
o ocorrido até chegar a hora.

E ela chegou.

Você caminhava, 
com meias e sandálias, 
para levar um menino ao trem.

Eu era pequeno 
e a música que havia ficado parada 
e esquecida no rádio voltava a tocar
agora.

E ele chorava de medo. 

Seguir adiante? Atravessar as estações? Ter de ouvir a velha piada sobre o que permanece e os passageiros? 
Viver era temer deslizar pelas rodas das ruas.

Mãe, eu não quero ir. 
E te odeio.
Faz frio.
Você me despeja no carro. 
E eu sumo.
Nunca mais nos vemos de novo,

Então você ajoelhava, entre vocês dois,
o trem e a plataforma, uma mãe e seu filho, o lustre e as ondas de luz, 
e olhava bem para ele. Cega. Sem os óculos. 
Esse cinema da vida cotidiana.

E o abraçava nada dizendo.

Mas eu sabia ler aquele abraço. 
Ele falava de preparar pelo afeto alguém para ir à cidade. 
Para ir à Saúde.
Para ir à saudade.

Lá,


Onde milhares de braços o aconchegariam
e as pessoas estariam doentes, 
vez ou outra deixando-se morder ou engolir por essa estátua 
enorme e ciumenta de luz e cimento.

Mas tocá-lo 
era enredar o filhote 
num barbante muito fino e delicado.

Nesse fio invisível. Amarrado sobre os dedos. Aliviando. Vivo.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Sina

Seja eu sempre
sem luz
e faltoso,

mas que precise
de outros dos sacrifícios
para enxergar. Pro gozo.

As lamparinas
me sigam
os olhos e o óleo

úmidos sobre
as unhas e os
acordados sinos,


acordai, avós e avôs
babás e babalaôs!

Pés e fé em terra
encerro, cerro. Ponto.

Será agora sina
percorrer espaços
na delicadeza
do inacabado.

De nada saber
das coisas, do solto.

Surja uma liberdade
suja de verdade
levantada em raízes
nos seus ninhos
sensíveis

do ver alto
de tocar
da fome toda
apoiando

construções concretas
algodões oblíquos

de sempre ser aluno,
pai mãe e filhos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Casa de vento

Quando era mais novo,
ouvia uma canção
que falava sobre casas 
feitas de farinha

Ouvi dizer
sobre meu coração
em um mapa
falar sobre ele ser uma
página em branco

Foi-se o tempo
em que foi preciso
pautar
a minha crença
e os meus amores
nos olhos dos outros
nas palavras das pessoas



me interessa
e toca hoje
simplesmente viver
com a minha namorada
na morada do tempo.

dançar cantar desenhar
minhas vidas, os joões que sou
sem possuir, nem ser posse
sem falsas poses

gostando e sendo gostado
e nisso criando
uma família 
e os alicerces de uma casa 

na qual seres da terra e das águas
peixes e passarinhos
e pessoas de vento e ar
possam morar. Em paz.

*

Foto de Fábio Veloso sobre o espetáculo Casa de Farinha.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Não se pode assaltar um espírito livre



Não se pode
roubar assaltar ou mutilar
um espírito livre.

Se lhe roubam
dedos (ou aneis)
vai o tempo
e os repõe.



Quando o assaltam nas ruas

as verdades o passado
o genuíno cuidado
os amores e o carinho
a história

como planta vigorosa
tudo refloresce teimosamente
em seu corpo ferido,
entre nuvens. A despeito do seu desejo, eu sinto.

Ao sorrirem para eles
nos transportes públicos
as crianças
não é a carne o que se vê:

um menino somente
consegue enxergar outros meninos
nos olhos cristalinos
e suas formas divinas.

Porque todos os homens
que se aproximam
da beleza e da verdade
(e por elas lutam, os imprescindíveis)
carregam seus deuses
em suas cabeças e os olhos agudos.

Sobre essa flor
de pétalas dentadas
e ervas verde-amareladas
eu olho para os meus amigos...
e as pessoas que amei:
como mudamos todos, não?

Que enorme distância
entre o que dizíamos acreditar falar
e o que foi feito das nossas vidas, né?

Mas não se irritem.
Em um bom café
forte doce
e uma conversa
tudo ficará branco
e claro. Bastará misturar
com os fatos e o tempo.

Dez anos passados
para a descoberta da nossa
verdadeira vocação:

amarmos
e sermos amados.
Sem excessos.

domingo, 13 de janeiro de 2013

O retorno de saturno

Quando, aos 28, 29 ele vem
para tomar um café 
em sua casa, 
não há muito o que se fazer.

Deve-se preparar 
a melhor roupa
uma boa comida
e partir simplesmente limpo.

Não se joga xadrez com o senhor,
nem se pode esconder.

Nada deve ocupar o pensamento
e os rios seguem seu curso.

Nós somos o rio
e as formigas a desviar
que se banham, ou bebem suas águas,
algas os vermes  e a formiga.

Se um homem faz uma roda,
ela o revela. A beleza do giro
e a feiura da madeira ele
nós somos o rio.

Deite, então, teus pés
sob essas águas
junto a mim. E o amor seja
uma coroa feita toda
de espinhos patas desses insetos
e asas de borboleta.

Como dois bichos,
nós somos o rio.